Na semana em que celebramos a data de lutas motivada pelo Dia Internacional da Mulher, o Sindsasc convidou Isabela Aysha, advogada periférica e feminista, escritora, professora, promotora legal popular, integrante do Coletivo Feminista Classista Marielle Vive e da Luta Socialista. Ela trabalha com educação popular com mulheres e jovens da periferia do DF. Nesta entrevista, ela fala sobre as origens da data e sobre a situação das mulheres diante da situação política do Brasil.
Por que dizemos que a data do Dia Internacional da Mulher não é por flores e sim por direitos?
É necessário resgatar a origem histórica que culminou no atual 8 de março, pois houve vários episódios marcantes para a consolidação de uma data específica.
Segundo a BBC Brasil, no Brasil, é muito comum relacionar a data ao incêndio ocorrido em Nova York no dia 25 de março de 1911 na Triangle Shirtwaist Company, quando 146 trabalhadores morreram, sendo 125 mulheres e 21 homens (na maioria, judeus), escancarando as más condições enfrentadas pelas mulheres no contexto de crise da Revolução Industrial. Mas, há registros de que reivindicações anteriores foram importantes para que as pautas da mulher operária pudessem ser inseridas dentro do movimento de trabalhadores. Segundo o mesmo site, a passeata reuniu cerca de 15 mil trabalhadoras em Nova Iorque, em fevereiro de 1909, protestando por melhores condições de trabalhos, pois viviam jornadas extenuantes de 16 horas, muitas vezes de domingo a domingo, foi o marco para o “ Dia Internacional da Mulher “ americano.
Na Europa, o movimento de mulheres operárias crescia, e , em agosto de 1910, a revolucionária alemã Clara Zetkin, propôs a criação de uma jornada de manifestações por igualdade de direitos na Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, para que assim, houvesse um momento dentro do movimento sindical e socialista dedicado a questões específicas das mulheres trabalhadoras.
Não é difícil imaginar a situação das mulheres operárias daquela época que trabalhavam o mesmo tanto que os homens, porém com menores salários e, após as jornadas extenuantes nas fábricas, ainda tinham que executar as tarefas domésticas, muitas delas morrendo antes dos 30 anos de idade.
Em 1917, na Rússia, milhares de mulheres operárias saíram às ruas protestando contra a fome e a Primeira Guerra Mundial, passeata que deu início à histórica Revolução Russa. Esse protesto ocorreu em 23 de fevereiro pelo antigo calendário russo, 8 de março pelo calendário gregoriano. Após a revolução bolchevique, a data foi oficializada entre os soviéticos como dia para celebrar a mulher heroica e trabalhadora.
Somente em 1975, a Organização das Nações Unidas – ONU, oficializou a data para o conjunto da sociedade. Com o passar dos anos, essa forte simbologia perdeu-se e o dia 8 de março foi transformado em mais uma data comemorativa vazia do calendário comercial, com troca de bombons e flores sem o devido resgate histórico e atual sobre ela. Por isso permanece presente a indagação de não queremos flores, queremos direitos !
Como você avalia a conjuntura política em que estamos e o impacto dela para as mulheres?
Nossa conjuntura política, social e economicamente caminha para o extermínio da população periférica, com o completo sucateamento dos serviços públicos e de assistência social e com a ameaça real a garantia de aposentadoria e trabalho dignos, devido às recentes Reformas da Previdência e Trabalhista aprovadas, além da conhecida Emenda Constitucional 95/16 que prevê o congelamento dos gastos públicos notadamente em áreas sociais (iniciadas antes do atual governo e potencializada nos últimos dois anos).
No governo Bolsonaro, com sua política machista e homofóbica assumida, tem agravado o ataque aos trabalhadores em geral e às mulheres trabalhadoras pobres e periféricas, além do ataque aos serviços públicos, à saúde, à educação. As consequências já começam a ser representadas em estatísticas alarmantes, uma vez que, os casos de feminicídio cresceram 7,2% em 2019, e hoje a média é de quatro mulheres mortas por dia no Brasil, na maioria dos casos por seus companheiros e ex-companheiros, segundo dados da Folha de São Paulo.
No Distrito Federal, a situação é tão alarmante que em 2020 já foram contabilizados quatro casos de feminicídio em menos de 15 dias. No ano passado, o Distrito Federal registrou 34 casos, um aumento de 62% em quatro anos, segundo dados do Jornal de Brasília. Diante desse quadro caótico, a declaração feita pelo governador do DF afirmando que, assim como casos de suicídio, os feminicídios não deveriam ser divulgados, em opinião contrária a diversas especialistas no assunto, evidencia seu despreparo frente ao grave problema enfrentado pelas mulheres no DF.
Vemos também que o completo descaso do GDF com os trabalhadores e as trabalhadoras da Assistência Social, leva a mulher pobre e periférica e sua família a saírem perdendo mais uma vez, porque, além de faltar o mínimo para sua subsistência ( por exemplo, há meses a distribuição de cestas básicas não está ocorrendo devidamente), o tratamento multidisciplinar e integrado previsto na Lei Maria da Penha, com o atendimento de psicólogos, assistentes sociais, etc, também encontra-se prejudicado, pois não há uma política pública que consiga enfrentar os índices alarmantes de violência doméstica que é endêmica e estrutural.
O conjunto das mulheres trabalhadoras sofre de maneira estrutural as diversas formas de violência, seja ela doméstica, sexual e/ou o feminicídio. Nós mulheres periféricas, diferentemente das mulheres economicamente privilegiadas, estamos sobrecarregadas pelo trabalho doméstico, com baixos salários, dupla jornada de trabalho, sem acesso à saúde pública de qualidade e a aborto legal e seguro, menos ainda a acesso a creche pública e educação de qualidade para nossos filhos e netos. Dentre nós, as mulheres negras são notoriamente as mais exploradas, são as que mais ocupam postos de trabalho precarizados e terceirizados, com salários mais baixos do que os das mulheres brancas. As LBTs são massacradas com crimes de ódio, como estupros corretivos e assassinatos. As mulheres indígenas sofrem com genocídio de seus povos e a destruição de suas comunidades, além de todas as violações e exclusões sofridas ao tentarem inserir-se nas cidades.
É desastrosa a política que vem sendo adotada pelo governo federal e seus aliados quando, ao invés de encarar todos os problemas citados, prefere empenhar esforço em declarações e campanhas entreguistas, privatistas, nas quais quem perde somos nós da classe trabalhadora e periférica, demonstrando claramente que está a serviço de uma classe privilegiada que não está disposta a discutir seus privilégios para construção de uma sociedade mais justa.
Normalmente vemos mobilizações e, inclusive, greves no mundo no dia internacional da mulher. Qual a importância da luta internacional das mulheres e suas pautas?
Foi graças a essas mulheres trabalhadoras que nos antecederam lutando por mais direitos e por um significado mais pleno de vida que vivemos muitos avanços no Brasil e no mundo, conquistados depois de muitas mortes, silenciamentos forçados, mas também com organização e construção de pautas para a emancipação das mulheres. Pautas essas que precisaram de fortes mobilizações não só institucionais, mas, principalmente, nas ruas para que fossem implementadas.
Entre os avanços fruto da mobilização do Movimento de Mulheres, está a Lei Maria da Penha, uma das mais avançadas no tema, que trouxe pela primeira vez a questão de gênero discutida no plano jurídico normativo do Estado Brasileiro, para que melhor se entenda a questão da violência doméstica e familiar vivida pelas mulheres cis ou trans; a inclusão da qualificadora do feminicídio que já havia sido discutida em vários países da América Latina, encarando a questão da posse e da custódia do corpo da mulher como uma questão de Estado.
Vemos que esse caminhar atualmente convive com uma política governamental de ataque frontal ao direito das mulheres, pois além de sua figura máxima ser abertamente machista, racista e misógina, o carro- chefe das pautas da pasta de mulheres concentra-se em campanhas, tais como : abstinência sexual na adolescência, combate a dita “ ideologia de gênero” nas escolas e outras campanhas conservadoras e sem efeito prático ao enfrentamento da violência doméstica vivida por mulheres e jovens. No Brasil, nos últimos dois anos, o Movimento de Mulheres auto-organizadas foi linha de frente na luta contra Bolsonaro, com o movimento “Ele Não” e seguimos mobilizadas frente aos ataques do governo. Estivemos presentes na marcha das mulheres indígenas e do campo, nas greves da educação, na greve geral de junho de 2019 e nas demais lutas em defesa das liberdades democráticas e do fortalecimento dos serviços públicos de qualidade.
As recentes mobilizações mundiais tais como a campanha do “Ni una a menos” na Argentina e a performance das chilenas com “ El violador eres tú”, denunciando o governo misógino de Piñera, além dos recentes protestos protagonizados pelas mulheres indígenas e camponesas na Bolívia, Chile e Colômbia, nos mostram que estamos diante de um fenômeno de proporções mundiais impulsionado pelas mulheres trabalhadoras pobres, negras, indígenas, estudantes, lésbicas, trans que lutam por igualdade social, trabalhista, salarial, para eliminação de todas as formas de violências contra nossos corpos e melhores condições de saúde, educação, moradia para nossa gente, atacando frontalmente o sistema capitalista excludente, misógino e machista.
Além da América Latina, os levantes internacionais protagonizados por mulheres - nos EUA, na Polônia, Sudão, Rojava, Palestina - demonstram que há muita disposição de luta. Em todo o mundo assistimos ao aumento dos casos de feminicídio, expressão máxima do machismo. Aumentaram os casos de estupro. A luta contra o crescente feminicídio e todas as expressões da violência sexista é urgente.
Cinzia Aruzza, uma das autoras do livro “Feminismo para os 99%: Um manifesto” nos convida a pensar a nova onda feminista como um processo de radicalização e de politização no qual a subjetividade das trabalhadoras – frequentemente jovens, precárias, mal pagas, não remuneradas, exploradas e abusadas sexualmente em seus locais de trabalho – está emergindo como uma subjetividade combativa e potencialmente anticapitalista.
Por isso, necessitamos de um feminismo que entenda a importância de colocar no mesmo patamar de discussão tanto as questões econômicas, como as questões de raça e gênero, todas cumprindo uma importância fundamental na luta contra um sistema capitalista em decomposição. Em um contexto internacional de crise do sistema capitalista, o feminismo classista, anticapitalista e antirracista aponta caminhos para a transformação social. A auto-organização das mulheres tem o potencial de questionar as diversas estruturas sociais que nos matam, nos prendem e nos violentam.
Assim, mais uma vez dissemos : Não é por flores, é por direitos! Ou ainda como as companheiras argentinas : No me digas feliz día, ¡levántate y lucha conmigo!
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